quinta-feira, 5 de abril de 2012

Como explicar a irracionalidade?

por Julio Canuto

Recentemente, na manhã de um domingo de Corinthians x Palmeiras, dois torcedores palmeirenses perderam a vida em uma briga entre as duas principais torcidas organizadas dos clubes, em região bem distante do estádio do Pacaembu, palco do clássico, aparentemente em uma briga marcada pela internet, onde as forças de segurança não souberam agir. Muito se falou logo após a tragédia, os ânimos se exaltaram. Foram relembrados fatos e inúmeras tentativas de explicar o inexplicável eram veiculadas em todos os meios de comunicação. Agora, porém, quando a poeira já baixou um pouco e algumas providências foram tomadas, como a prisão de suspeitos dos crimes, aparecem outros fatos.

NA MÍDIA

O assunto foi tratado na mídia com todo o sensacionalismo que a situação requer. De um lado, mostra-se quão violentas as organizadas são, relembrando fatos anteriores e dando característica aos filiados. Em suma, este seria o perfil: jovens violentos, desprovidos de qualquer noção de cidadania, que se reúnem para cometer crimes escondidos sob a camisa de um time de futebol. Contraditoriamente, as vítimas fatais aparecem como jovens torcedores, trabalhadores, filhos de alguém (sim, nesta ótica eles tem famílias) que tiveram suas vidas interrompidas de forma banal, em uma atitude estúpida. Enfim, em ambos os casos são caricaturas.

As reações são também bastante violentas: “cadeia neles”, trancá-los em um espaço para que se matem etc.. Não há, porém, uma explicação.

OS CLUBES

Da parte dos clubes, é óbvio que as torcidas organizadas desfrutam de privilégios. No mínimo têm ingressos reservados e locais próprios nos estádios, quando não transporte para levá-los onde o time estiver. E claro, forte influência nos bastidores dos clubes, que podem se traduzir em ameaça a dirigentes e atletas.

Recentemente, no programa Mesa Redonda, da TV Gazeta, o presidente da S.E. Palmeiras – sob a acusação de que os clubes defendem as organizadas - falou sobre a relação da diretoria com as torcidas. Segundo ele, o clube procura atendê-los, e a reserva de ingressos e até escolta é uma providência tomada para evitar a violência dentro e fora dos estádios.

Hoje, porém, uma matéria no portal do Estadão, assinado pelo Wagner Vilaron, chamou minha atenção. Diz ele que participou de um almoço com dirigentes de grandes clubes paulistas e o tema das organizadas – que ele chama de facções - veio a tona, revelando que os dirigentes têm medo das torcidas.

“Os três mostraram-se contrários, muitas vezes indignados, com a maneira como estas facções agem. Então fiz a pergunta mais óbvia: se todos discordam e lamentam o fato de as mortes serem recorrentes, por que ninguém faz nada?

"Nós (dirigentes) temos medo. Todos têm medo. Se você bate de frente com essa gente (facções organizadas) eles não medem esforços para te intimidar. E todos aqui têm família. Agora te pergunto: quem tem coragem para encarar essa briga. (As autoridades) Vão colocar proteção para você durante um tempo, depois esquecem. Veja os juízes de Direito que, vira e mexe, são mortos", foi o primeiro argumento usado. Confesso, tive dificuldade em discordar.

Na sequência até que fiquei orgulhoso. Ouvi deles exatamente o que escrevi aqui na semana passada. "Estamos diante de um problema de segurança pública. É preciso que o Estado assuma essa causa. Os clubes e as federações podem até ajudar, mas a solução passa necessariamente pelo envolvimento do poder público."”

PESQUISA e HISTÓRIA

O fato é que essa situação é absurda e sua análise muito trabalhosa. Fui pesquisar algo que trouxesse mais explicações sobre a origem destes comportamentos violentos e ao menos levantasse algumas hipóteses. Afinal, todos tem pais e tios que dizem que frequentavam os estádios ao lado de torcedores rivais, mas que isso pertence ao passado, tempo que não volta mais. Nossa realidade hoje é muito assustadora. Estima-se que 155 pessoas já perderam a vida de 1988 até hoje, conforme levantamento do Lancenet!. De fato, é um problema de segurança pública, mas seria “só” isso?

Vamos recorrer a história para tentar compreender um pouco mais. Interessante artigo do sociólogo Carlos Alberto Máximo Pimenta (Violência entre torcidas organizadas de futebol, publicado em 2000) traz importantes questionamentos:

A violência ao redor do futebol não é acontecimento novo e há exemplos na história do futebol brasileiro e mundial de atos de extrema violência entre torcedores. O que é inédito é o movimento social de jovens em torno de uma organização que difunde novas dimensões culturais e simbólicas no cotidiano urbano, amoldando o comportamento dos inscritos. Diante desse contexto, duas questões ficam registradas: quem são esses "torcedores"? Quais os motivos desse aumento considerável de violência?

Dos anos 80 para cá, sabe-se que, no Brasil, o comportamento do torcedor nas arquibancadas dos estádios de futebol modificou-se consideravelmente. Isso se deu pelo surgimento de configurações organizativas com característica burocrática/militar, fenômeno essencialmente urbano que cria uma nova categoria de torcedor, ou seja, o chamado "torcedor organizado".

Fica uma indagação: em quais circunstâncias socioculturais, políticas e econômicas nasce essa "nova categoria de torcedor"? A questão perpassa todo texto e remete à análise da constituição do tecido social das grandes cidades.

Pimenta vai ao ponto central com sua indagação, e embora não chegue a uma resposta definitiva (e nem se propõe a isso), traz importantes informações baseadas em pesquisas com torcedores e “autoridades esportivas” que mostram o sentimento existente e os divergentes pontos de vista. As explicações tem ressonância nas seguintes justificativas: má distribuição de renda; exploração dos dirigentes esportivos e dos líderes das "torcidas"; efeitos da criminalidade; ausência de expectativa de futuro aos jovens; ausência do Estado, enquanto mentor de políticas públicas de formação social; efeitos da pobreza; afrouxamento da ordem legal e das posturas repressivas das instituições de segurança e justiça; falta de emprego; miséria generalizada; familiarização com a violência; falta de infra-estrutura nos estádios de futebol; má arbitragem; gozações de adversários; derrota de uma partida de futebol (PIMENTA, 2000).

Como se vê, uma longa lista que perpassa as dimensões socioeconômicas, culturais e da organização do futebol. Destas, a banalização da violência talvez seja a mais grave, pois mostra a total falta de horizonte destes jovens, onde a vida de desconhecidos não têm qualquer valor. Mas Pimenta nos alerta que estas explicações não são suficientes, e portanto, as soluções apontadas com base nessas explicações não podem resolver o problema:

“As atitudes e as estratégias explicativas da violência (seja qual for sua natureza) com ênfase apenas no fortalecimento dos mecanismos de "segurança", no direcionamento das ações do poder público ao "disciplinamento" e à "manutenção da ordem social vigente" devem ser, veementemente, refutadas para evitar injustiças e erros, historicamente repetidos. Primeiro, porque quem produz a violência, no visor imaginário dosenso comum, é só a pessoa de baixo poder aquisitivo, pobre, negro ou mestiço. Segundo, porque a ordem dominante não reconhece que a violência pode constituir outras formas de relações sociais, reproduzindo representações, códigos e estilos de vida próprios. Por fim, porque o discurso dominante não reconhece que o indivíduo faz parte de um sistema social de padronização subjetiva e que recebe informações de diversas ordens, reagindo aos estímulos com afetos, angústias, frustrações, excitações, prazer, etc.

A seguir, afirma que:

“a violência não é disjunta da realidade social e que é parte da dimensão real do cotidiano dos espaços urbanos das grandes cidades brasileiras e, consecutivamente, dos grupos de jovens. Portanto, a mola propulsora dessas dimensões sociais, combinadas com uma infinidade de fatores históricos, econômicos e socioculturais, ganha efeito pela produção do esvaziamento político do sujeito social.

O que faz muito sentido, haja vista que a violência entre torcedores não é a única forma de violência banal que ocorre atualmente. Mortes por roubo de objetos de consumo são muito frequentes em uma sociedade que preza pelas aparências. Não basta fazer parte de um grupo e ter uma identidade, é necessário que este grupo seja o mais forte, o mais respeitado – ou mais temido. É necessário status. Pimenta conclui assim seu artigo:

Três aspectos se convergem para justificar e explicar a violência entre "torcidas": a juventude, cada vez mais esvaziada de consciência social e coletiva; o modelo de sociedade de consumo instaurado no Brasil, que valoriza a individualidade, o banal e o vazio; e o prazer e a excitação gerados pela violência ou pelos confrontos agressivos.

O que se arrisca, por derradeiro, dizer é que a violência caracterizou-se como parte intensa nas dimensões do cotidiano urbano contemporâneo, em especial dos grandes centros, sendo que uma pista importante, diante da intolerância da "comunidade" esportiva e das "autoridades públicas" ao movimento de "torcidas organizadas", cinge-se na indicação de que a repressão (policial, legal, etc.) contribui para manter uma "suposta ordem", porém, contribui, também, no deslocamento dessa massa jovem para outros movimentos de busca de prazer e de excitação.

Enfim, a postagem não tem a mínima intenção de trazer propostas para solucionar o problema. Se fosse assim fácil, as providências já deveriam ter sido tomadas. Este é apenas um esforço para trazer mais elementos e provocar a reflexão, enxergando a violência de torcidas não como um fato isolado, mas como mais uma forma de violência que temos produzido em nossa sociedade. A punição é a maneira mais rápida e de maior visibilidade, mas a pergunta maior (na maneira que Adorno a fazia logo ao final da segunda guerra) é: de que forma nós, como sociedade, produzimos indivíduos que facilmente tiram a vida de outra pessoa por motivo banal? Ou melhor: como cada ator social (torcedores, autoridades esportivas, mídia, clubes, etc.)tem contribuído para chegarmos a esta situação?

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Referências:

"Sim, temos medo!" . Vagner Vilaron. O Estado de São Paulo. 05/04/2012.

Violência: triste ranking dos que mais morrem e matam. Rodrigo Vessoni. Lancenet!, 05/04/2012.

Violência entre torcidas organizadas de futebol. C.A.M.Pimenta. São Paulo Perspec. vol.14 no.2 São Paulo Abr./Jun. 2000

3 comentários:

Ton Figueiredo disse...

Como sempre #TOP Julião...Puta texto que analisa a violência no futebol...Vamos divulgar no face e no twitter

Júlio disse...

Valeu, Figa!

Assim como você, eu tb costumo falar nas conversas de bar que a solução é trancá-los para que se matem... rsrs Mas como vc já tinha dito isso, eu procurei outro caminho. Coincidentemente quando eu tive o tempo para escrever apareceram as duas matérias (do Estadão e Lancenet).

Valeu pela divulgação também.

Abraços.

léo disse...

Muito bom o post Julião!

No meu ponto de vista, o futebol é só pretexto. A violência é inerente ao ser humano. Freud tratava o tema como pulsão de morte (tânatos), tão presente quanto a pulsão de vida (eros).

Nunca haverá educação para todos, nem saúde para todos, nem lazer para todos. Sendo assim, no máximo o problema pode até ser amenizado, mas nunca eliminado. E segue o jogo...

E só à título de curiosidade, conheci o Pimenta há algum tempo atrás... foi um jogador frustado, o q o levou a tratar o tema. Tem ótimas pesquisas ligadas ao futebol. Até então era professor em Taubaté, formado na PUC SP.

abç